Ônibus, de Marianne Dubuc

Os Príncipes Transformados em Pedra, uma história da Índia

por Paula Lisboa

Eunice de Souza (1940–2017), poeta, novelista e crítica literária indiana.

Esta história é um dos dez contos presentes no livro Histórias da Índia, de Eunice de Souza. Pelo sobrenome pode parecer que a autora é brasileira, mas ela nasceu em Pune, na Índia, e tem esse nome pois faz parte de uma das muita famílias indianas que foram batizadas católicas há quatrocentos anos atrás, em um momento histórico de invasão desse país. A religião principal da Índia é o hinduísmo, mas existem também algumas outras, pois a Índia é um país muito diverso, composto de diferentes povos, cada um com seus hábitos, costumes, crenças e histórias.

Nesse livro, a autora traz contos tradicionais de diferentes povos e regiões, que assim como os nossos contos populares, que vocês já conhecem bem, também foram contados de boca em boca através das gerações, de forma que não sabemos mais ao certo quem inventou, nem quando. Em cada história narrada, a autora situa de que região é aquela história e destaca aspectos da cultura indiana que podem ser observados a partir daquele conto.

A história Os Príncipes Transformados em Pedra, por exemplo, vem da região do Himalaia, e nela podemos perceber que os indianos acreditam que qualquer pessoa pode ser um sábio, seja ele um príncipe ou um simples iogue, seja ele um rei ou um barbeiro (como aparece em outra história presente no livro, chamada Gopal e o Nababo). No conto, os príncipes são punidos por não saberem usar a inteligência, tão necessária para tornarem-se pessoas úteis para seu povo. Não adianta serem príncipes herdeiros, eles precisam também desenvolver a sabedoria. Quem vai oferecer esse ensinamento para eles é um iogue, ou seja um praticante de ioga. Hoje para nós ioga é uma prática de exercício físico e mental, usada por muita gente, mas os antigos praticantes de ioga, na Índia, eram chamado de siddhas (perfeitos) pois exercitavam a mente com tanta regularidade que todos acreditavam que fossem dotados de muita sabedoria e capazes de usar o poder da mente para controlar a natureza.

Esse é um dos contos indianos que traz ensinamentos para nós, sobre a importância de cuidarmos bem de nossa saúde, sobre a ambição exagerada que traz peso ao invés de completude, sobre a extravagância que pode nos esvaziar a ponto de ficarmos sem nada…

Mas principalmente ela traz a tranquilidade que as boas histórias nos trazem, histórias que nos levam a outros cantos do mundo, com feitos e referências que nos complementam e ampliam nosso olhar para a existência.

Convido você a ouvir a leitura que fiz desse conto no podcast Critique em um Instante.


SOUZA, Eunice de. Histórias da Índia. São Paulo: SM, 2009. 63 p. (Cantos do mundo).

Antonia, de Anke de Vries e Piet Grobler

O ônibus de Rosa

por Paula Lisboa

A história desse livro é contada em dois tempos, como uma história dentro de outra. O livro começa com o passeio de um menino e seu avô ao museu da marca de carros Ford. No começo o menino não entende porque seu avô está tão interessado em ônibus e carros, mas logo tudo é explicado, quando começa a história dentro da história.

Eles entram juntos em um dos ônibus do museu e o avô conta que aquele é o ônibus de Rosa, fazendo referência à ativista negra norte-americana Rosa Parks. Toda a história contada pelo avô traz muitas referências da triste realidade vivida pelos negros norte americanos até o ano de 1956, quando a Suprema Corte dos EUA decidiu que a segregação racial em locais públicos nos EUA era ilegal, uma vitória do movimento negro na conquista de direitos civis.

Antes disso, como é mostrado na história, as pessoas de pele negra eram separadas das pessoas de pele branca, não podendo estar juntos na escola, em restaurantes, em bancos de praça, no transporte público… Especialmente nos estados do sul dos EUA existiam lugares divididos para brancos e para negros, e nos ônibus as pessoas negras eram obrigadas a ceder seu lugar caso entrasse uma pessoa branca e não tivesse mais lugar pra sentar.

Até o dia em que uma mulher negra cansada de se sentir humilhada – além de cansada de um dia inteiro de trabalho – disse não e recusou-se a levantar do seu lugar, com firmeza e convicção. Essa mulher era a Rosa Parks, e o avô do menino presenciou a cena, pois estava voltando do trabalho no mesmo ônibus que ela. Ele conta que a mulher foi levada pela polícia e presa, mas não foi em vão: o acontecido provocou um movimento de boicote ao transporte público por parte dos negros da cidade, o que gerou bastante prejuízo para as empresas de ônibus. Um ano depois, foi proibida de vez a separação entre pessoas negras e brancas nos transportes públicos do país.

Esse livro traz uma linda história de convivência e troca de experiências entre um avô e um neto, e só por isso já valeria a pena ser lido. Mas além disso, de um jeito poético, de leitura agradável e com lindas ilustrações, ele traz pra gente informações e reflexões sobre um passado não tão distante de nós, quando os seres humanos eram ainda mais intolerantes entre si. Se você tiver a chance de ler esse livro na companhia de um adulto, pode conversar com ele sobre as tantas referências de eventos da realidade que aparecem na história, e assim aumentar seu conhecimento do mundo.

O ônibus de Rosa / Fabrizio Silei, Maurizio A. C. Quarello; tradução Maurício Santana Dias. São Paulo: Edições SM, 2011.


Se ficou com curiosidade para conhecer a verdadeira Rosa Parks e a história que inspirou este livro, eu recomendo a matéria Há 64 anos, Rosa Parks recusava-se a entregar seu lugar no ônibus para um homem branco, publicada na revista Aventuras na História.

Você também pode ouvir a leitura que eu fiz do livro inteiro para o podcast Critique em um instante: Aproveite para ler – O ônibus de Rosa, lido por Paula Lisboa

E para terminar, há um completo Guia de Leitura para o Professor elaborado pela editora do livro no Brasil. 

TANTA POESIA

Era ele que erguia casas onde antes só havia chão”, inicia Vinicius de Moraes em seu poema O Operário em Construção. Com poesia erguemos casas, sonhos e manifestos. Erguemos nossas vozes para construir palavras, sejam elas de amor, de afeto, sejam de revolta, de luta. Na voz de Ricardo Aleixo:

quanta poesia
fiz enquanto não fazia
tanta poesia

Sem saber nem perceber, fazemos poesia em nossas vidas. E no mês de outubro teremos um dia inteiro para colocar a poesia em evidência, em todas as suas formas e expressões, no tão aguardado XII Festival de Poesia da Escola da Vila!

Para nos preparar, listamos alguns destaques das aquisições recentes do acervo da Biblioteca. Fiquem à vontade para consultar e se aventurar nesse rico universo!

50 poemas de revolta / vários autores. Companhia das Letras, 2017. 143 p.

Desigualdade social, racismo, machismo, incontáveis modalidades de opressão e intolerância: esses são os temas tratados por 34 poetas brasileiros, clássicos e contemporâneos que denunciam os tempos sombrios em que vivemos.

porto alegre, 2016

(…)
agora a colher cai da boca
e o barulho de bomba é ali fora
e a polícia pra cima dos teus afetos
munida de espadas, sobre cavalos

(Angélica Freitas)

 

 

Destino: poesia – antologia / organização: Italo Moriconi. J. Olympio, 2016. 159 p.

Antologia que reúne os cinco maiores nomes da poesia marginal, escrita nos anos 1970, no Brasil. Uma coletânea de poemas irreverentes, melódicos e contestadores, que já entraram para a história da poesia brasileira.

Lar Doce Lar

Minha pátria é minha infância:
Por isso vivo no exílio

(Cacaso)

 

 

 

 

Torquato Neto : melhores poemas / Torquato Neto ; seleção de Cláudio Portella. Global, 2018. 191 p.

Torquato Neto viveu apenas 28 anos, pouco mas suficiente pra deixar sua marca. Foi poeta, jornalista, compositor, agente cultural e defensor das manifestações artísticas de vanguarda, como a Tropicália, o cinema marginal e a poesia concreta.

Soneto da contradição

Faço força em esconder o sentimento
do mundo triste e feio que eu vejo.
Tento esconder de todos o desejo
Que eu não sinto em viver todo o momento
(…)

 

 

Modelos vivos / Ricardo Aleixo. Crisálida, 2010. 155 p.

Ricardo Aleixo é considerado um dos mais inventivos poetas brasileiros contemporâneos. Sua obra é marcada por aspectos da cultura afrobrasileira e pela denúncia ativa do racismo.

Minha linha

Que o dono da fala / nunca / permita que eu saia / da linha / a linha que / quanto mais torta / mais posso dizer / que é a minha (…)

 

 

 

 

Mundo palavreado / Ricardo Aleixo ; ilustrações Silvana Beraldo. Peirópolis, 2013. 113 p.

Re: provérbio

quem nunca comeu farelos
aos porcos se misturando
que atire a primeira
pérola

 

 

 

 

 

 

Pesado demais para a ventania : antologia poética / Ricardo Aleixo. Todavia, 2018. 195 p.

Álbum de família

Meu pai viu Casablanca três vezes (duas no cinema e uma na TV). Meu avô trabalhou na boca da mina. Meu bisavô foi, no mínimo, escravo de confiança.

 

 

 

 

 

 

 

Outros jeitos de usar a boca / Rupi Kaur ; tradução Ana Guadalupe. Planeta, 2017. 208 p.

Outros jeitos de usar a boca é um livro de poemas sobre a sobrevivência. Sobre a experiência de violência, o abuso, o amor, a perda e a feminilidade. Outros jeitos de usar a boca transporta o leitor por uma jornada pelos momentos mais amargos da vida e encontra uma maneira de tirar delicadeza deles.

eu não fui embora porque
eu deixei de te amar
eu fui embora porque quanto mais
eu ficava menos
eu me amava

 

 

 

 

Primeiro caderno do alumno de poesia / Oswald de Andrade. Companhia das Letras, 2018. 39 p.

Edição fac-similar do livro lançado originalmente em 1927, considerado por Augusto de Campos como “possivelmente o mais belo livro de poesia de nosso modernismo”.

As quatro gares
Infancia
O camisolão / O jarro / O passarinho / O oceano / A visita na casa que a gente sentava no sofá
Adolescencia
Aquelle amor / Nem me falle
Maturidade
O Sr. e a Sra. Amadeu / Participam a V. Excia. /  O feliz nascimento / De sua filha / Gilberta
Velhice
O netinho jogou os oculos / Na latrina

 

 

A vida não me assusta / poema de Maya Angelou ; pinturas de Jean-Michel Basquiat ; organizado por Sara Jane Boyers ; tradução Anabela Paiva. DarkSide, 2018. 48 p.

Publicado originalmente há 25 anos e até então inédito no Brasil, o livro reúne os talentos da poeta e ativista Maya Angelou e do artista gráfico Jean-Michel Basquiat: dois artistas com histórias de vida sofridas e infâncias problemáticas, mas que nunca se deixaram intimidar. Não importa o obstáculo, você sempre pode encontrar forças para superá-lo.

Sombras dançando nos muros
Sons que brotam do escuro
Nada na vida me assusta
Cachorros bravos rosnando
Fantasmas voando em bando
Nada na vida me assusta

 

 

 

Quadras paulistanas / Fabrício Corsaletti & Andrés Sandoval. Companhia das Letras, 2013.

Neste livro, Corsaletti se propõe a colocar a poesia – em vez da prosa – a serviço da crônica do cotidiano. Ao lado de fascinantes desenhos do artista Andrés Sandoval, temos aqui versos feitos ao calor da hora, a partir de fatos, encontros e imprevistos do dia a dia.

ônibus cheio: desisto
vou a pé, chego atrasado
menos, porém, que os amigos
que decidem ir de carro

AMPLIANDO AS POSSIBILIDADES ÉTNICAS NOS CONTOS DE FADAS

Por Paula Lisboa

Já falamos um pouco aqui sobre a importância dos contos de fadas na formação leitora das nossas crianças. Como parte do universo dos contos de tradição popular, os contos de fadas estão presentes em todas as culturas, com variações a depender de seu país e cultura de origem.

Façamos aqui outra reflexão: para além das narrativas em si, quais são as referências étnicas e culturais trazidas pelo mundo encantado das histórias mais difundidas entre nós, cujos autores e compiladores são de origem européia? Basta uma rápida pesquisa no google para constatar:

Cinderela: sempre loira de olhos azuis / Rapunzel: loira de olhos verdes, às vezes com cabelo castanho claro / Cachinhos Dourados: loira de olhos azuis / Joãozinho e Maria: cabelos castanhos por vezes loiros, mas sempre de pele branca

Não é difícil imaginar que a representação de um universo exclusivamente branco possa afetar diretamente a autoestima das crianças não brancas, assim como limitar a formação de referências étnicas de todas as crianças. Isso se torna ainda mais preocupante em um país como o nosso, onde mais da metade da população é de pretos ou pardos (54% em 2015, segundo dados do IBGE).

Foi com esta preocupação que Ronaldo Simões Coelho e Cristina Agostinho criaram magistralmente estes recontos incríveis, ambientados nas diversas regiões do Brasil. Para completar, Walter Lara ilustrou de maneira belíssima as princesas, príncipes, bruxas, monstros e animais, partindo do nosso imaginário cultural.

Vale a pena conhecer e ler para as crianças toda a coleção, já preparados para os questionamentos que é bem provável que possam aparecer. É importante estarmos abertos para a reflexão, e se ficar sem respostas podemos também expor nossas dúvidas. Afinal de contas, há quanto tempo vemos as princesas sempre brancas e loiras, não é mesmo?

AGOSTINHO, Cristina; COELHO, Ronaldo Simões. Afra e os três lobos-guarás. Belo Horizonte: Mazza, 2013.

AGOSTINHO, Cristina; COELHO, Ronaldo Simões. Joãozinho e Maria. Belo Horizonte: Mazza, 2013.

AGOSTINHO, Cristina; COELHO, Ronaldo Simões. Rapunzel e o Quibungo. Belo Horizonte: Mazza, 2012.

AGOSTINHO, Cristina; COELHO, Ronaldo Simões. Cinderela e Chico Rei. Belo Horizonte: Mazza, 2015.

DRUFS E O LIVRO DA FAMÍLIA

Por Paula Lisboa

Os 3ºs anos do Ensino Fundamental realizam um elaborado projeto chamado “Livro da Família”.

O projeto tem uma série de etapas que envolvem tanto conteúdos de Ciências Sociais – Memória e História: quem somos nós? – quanto de Práticas de Linguagem – produção de história de infância e a produção final de um livro individual contando a sua própria história.

Falar em família é também pensar em diversidade. Afinal, o leque de opções para a formação familiar é amplo e envolve aceitar diferenças relativas a diversos aspectos: número de pessoas, pais separados ou juntos, casados de novo ou solteiros, crianças que perderam um dos pais, que moram com avós, que são adotivas, que são filhos de relações homoafetivas, pais ou mães que viajam muito ou moram fora, pais ou mães que criam seus filhos sozinhos…

Para contribuir com a reflexão, convidamos os alunos para vir à biblioteca ouvir a leitura de uma história da brilhante autora e ilustradora Eva Furnari. Em DRUFS, seu último livro lançado em 2016, Eva apresenta “certas coisinhas interessantes (ou desinteressantes) que os alunos da professora Rubi escreveram sobre suas próprias famílias” – mais ou menos o que nossas crianças estão fazendo.

Durante a leitura os alunos se mantiveram bastante envolvidos e levantaram questões importantes de serem ouvidas, acolhidas e esclarecidas.

– Ah, já sei, ela deve ser filha adotiva!

– Ah essa família é igual na minha casa: cada um tem um pai, mas todos têm a mesma mãe.

– Coitado, o pai dele morreu…

– Eles são muito engraçados!!

– Mas ela tem dois pais mesmo ou um deles é o padrasto?

– Eu também, sou a única diferente da minha família, todo mundo é parecido, só eu que não!

– Eu percebi que cada família é diferente e também que cada um tem o seu jeito de apresentar a sua família…

E eu, mais uma vez, percebi que as histórias são um poderoso meio para provocar reflexão, se colocar no lugar do outro e trazer questões pessoais à tona. =)

FURNARI, Eva. Drufs. São Paulo: Moderna, 2016.

“PODE PEGAR!”, DE JANAÍNA TOKITAKA

por Paula Lisboa

Sabemos que as histórias e os livros infantis têm grande potencial formativo, ajudando na construção da identidade da criança, criando suas primeiras referências de heróis e heroínas. Considerando isso, não podemos ignorar a necessidade de oferecer contos onde não só os meninos mas também as meninas cumpram papel principal, indo além do lugar associado à fragilidade e dependência.

Em seu novo livro “Pode Pegar”, Janaína Tokitaka – autora e ilustradora formada aqui na Escola da Vila – apresenta a história de dois coelhinhos que trocam livremente de roupas e acessórios, sem se importar se isso é “de menino” ou “de menina”. No começo da história eles estão claramente caracterizados como “menino” e “menina”, mas depois do troca-troca já não sabemos mais quem é quem. Afinal o que importa é a liberdade de brincar, experimentar e se divertir! E assim, de maneira sutil e delicada, a autora desconstrói os estereótipos de gênero e deixa no ar a pergunta: o que faz uma roupa ser de menino ou de menina?

Leia mais sobre a discussão proposta pelo livro aqui e aqui!


Janaina: ‘Escrevi o livro com a esperança de que as crianças de hoje se tornem adultos livres, leves e felizes’

TOKITAKA, Janaina. Pode pegar! São Paulo: Boitatá, 2017.