CONTOS COM REPETIÇÃO

Por Paula Lisboa

Quando observamos as estruturas das histórias tradicionais, ou seja, a forma como a narrativa dessas histórias é organizada, podemos identificar com muita frequência contos com repetição de diferentes tipos. Pode ser uma fala que se repete, ou algum evento ou ainda uma ação. Os chamados contos com repetição se caracterizam por apresentar uma estrutura que contém sequências recorrentes, que se repetem ao longo da trama.

Um exemplo de conto de repetição que é bem conhecido e muito adorado pelas crianças é o Caso do Bolinho, aposto que você conhece! A versão que mais circula é essa da Tatiana Belinky, com diferentes ilustrações em cada edição, mas o reconto é o mesmo.

O Caso do Bolinho |O Caso Do Bolinho - Coleção Hora Da Fantasia (Em Portuguese do Brasil): Tatiana Belinky: 9788516041328: Amazon.com: Books

 

Entre os contos tradicionais, é muito comum encontrarmos diferentes versões de uma mesma história, que trazem variações em função da região de origem e da forma como cada pessoa reconta. Vou apresentar pra vocês outra história muito semelhante ao Caso do Bolinho, recontada pela Linda Rode, no livro Na Terra do Nunca Jamais. 

“Rola, pãozinho, rola”. RODE, Linda. Na terra do Nunca-Jamais. São Paulo: Martins, 2014. Ilustrações Fiona Moodie.

Em um dia frio e nevoento, uma mulher fez três pãezinhos redondos para o marido, que ficaria no campo o dia todo, carpindo um lote de terra. A mulher pôs os três pãezinhos em um prato para que esfriassem. O maior e o médio repousaram tranquilos e fumegantes no prato. Mas o menor deles, tostadinho de dar água na boca, remexeu-se e agitou-se até ficar de pé. Rolou para fora do prato, saiu pela porta e desceu girando e rodando pela encosta da colina onde ficava a pequena casa.

-Ninguém vai me comer! – ria ele, com sua risada rouca de pãozinho. – Eeeeeeee! Estou livre, livre, liiiivre!

Mas, ah, não!, no pé da colina, o pãozinho chegou à margem de um rio largo e agitado. E agora? Como chegar ao outro lado? Os juncos que cresciam à margem suspiraram e sussurraram, e no meio deles uma raposa ruiva mostrou a ponta de seu tocinho preto.

-Ah, pobre pãozinho – disse a raposa, lambendo os lábios com sua longa língua cor-de-rosa. – Vejo que está com um problema. Mas eu posso levá-lo até o outro lado.

-Não, não, obrigado – respondeu o pãozinho, com sua vozinha rouca. Você quer me comer, eu sei.

-De jeito nenhum! – protestou a raposa. – Sente-se na ponta da minha cauda, onde ficará seguro, e eu o levarei para o outro lado.

O pãozinho rolou para cá, rolou para lá e então disse:

-Está bem. Assim parece seguro. – Ele pulou para a ponta da cauda da raposa, e a raposa entrou na água.

Logo o rio ficou mais fundo. A raposa começou a nadar e disse:

-Venha para minhas costas, pãozinho, ou ficará molhado.

E o pãozinho rolou para as costas da raposa.

-Venha para meu pescoço, pãozinho, a água está ficando muito funda. Na metade do caminho, a raposa falou:

E o pãozinho rolou para o pescoço da raposa. A três quartos do caminho, a raposa disse:

-Venha para a ponta do meu focinho, pãozinho, ou você vai se encharcar!

Ainda acreditando que estava seguro, o pãozinho, tostadinho de dar água na boca, rolou para a ponta do focinho preto da raposa. Vuup. A raposa balançou o focinho no ar, apanhou o pãozinho na descida e crunch-crunch, comeu-o sem cerimônia.

Rindo de satistação, virou-se e nadou de volta.

Esse é um exemplo de repetição de fala e de ação, quando uma mesma sequência de fala e ação se repete, com uma pequena mudança a cada vez. Outra forma de repetição são as situações que se justapõem, que vão se somando em sequência, como quando um ou mais personagens realizam ações sucessivas que se repetem, podendo ser de acumulação – daí as histórias acumulativas -, ou de subtração – como os tangolomangos.

Os contos acumulativos são muito comuns nas Américas e em Portugal, mas aparecem no folclore de diversas partes do mundo.  Muitos contos desse gênero e em diferentes versões já foram recolhidos no Brasil por vários autores, em muitos casos de origem portuguesa, espanhola ou africana, com acréscimos e alterações locais.

No mesmo livro já citado, a compiladora de contos Linda Rode conta uma história que é um bom exemplo de conto acumulativo, onde as situações vão se justapondo, se somando sucessivamente.

“Piggy-Wiggy vem do mercado”. RODE, Linda. Na terra do Nunca-Jamais. São Paulo: Martins, 2014. Ilustrações Fiona Moodie.

Em uma região na África, onde cacaueiros e bananeiras crescem altos e viçosos, certo dia um menino foi ao mercado. Seu nome era Kofi. Sua mãe lhe deu dinheiro, um punhado de amendoins para comer pelo caminho e lhe disse para comprar um porco.

Kofi escolheu um porco pequeno e gordo. Ele assobiava enquanto voltava com seu porquinho. Porém, antes de chegar em casa, havia um rio para atravessar. Piggy-Wiggy empacou.

-Oinc, óinc- grunhiu ele., -Não vou entrar na água.

Kofi pediu:

-Por favor, Piggy-Wiggy, não se negue a se molhar,

Ou a gente não chega até a hora de deitar.

Mas Piggy não quis entrar na água.
Koi caminhou pela margem do rio. Viu um cachorro e disse:
-Cachorro, Cachorro, por favor, morda o Porco.
O Porco não quer atravessar o rio.
Desse jeito eu não vou conseguir chegar
antes da hora de me deitar.
Mas o Cachorro não quis morder o porco.
Kofi continuou andando. Ele viu uma vareta e disse:
-Vareta, Vareta, por favor, bata no Cachorro.
O Cachoro não quer morder o Porco,
o Porco não quer atravessar o rio.
Desse jeito eu não vou conseguir chegar
antes da hora de me deitar.
Mas a Vareta não quis bater no Cachorro.
Koi andou um pouco mais pela margem do rio. Ele viu um fogo aceso e disse:
– Fogo, Fogo, por favor, queime a Vareta.
A Vareta não quer bater no Cachorro,
o Cachorro não quer morder o Porco,
o Porco não quer atravessar o rio.
Desse jeito eu no vou conseguir chegar
antes da hora de me deitar.
Mas o Fogo não quis queimar a Vareta.
Então, Kofi falou com a água do rio:
-Água, Água, por favor, apague o Fogo.
O Fogo não quer queimar a Vareta,
a Vareta não quer bater no Cachorro,
o Cachorro não quer morder o Porco,
o Porco não quer atravessar o rio.
Desse jeito eu não vou conseguir chegar
antes da hora de me deitar.
Mas a Água não quis apagar o Fogo.
Kofi viu, então, uma enorme cobra enrolada entre os juncos e disse:
-Cobra, Cobra, por favor, beba a Água.
A Água não quer apagar o Fogo,
o Fogo não quer queimar a Vareta,
a Vareta não quer bater no Cachorro,
o Cachorro não quer morder o Porco,
o Porco não quer atravessar o rio.
Desse jeito eu não vou conseguir chegar
antes da hora de me deitar.
-SSsSssim – sibilou a enorme cobra, -Essstou messsmo sssedenta. Bassstam algunsss golesss, e o rio ssserá terra barrenta.
E a Cobra começou a beber a Água. Sssip, sssip, sssip…
A água ficou com medo e apagou o Fogo.
O Fogo queimou a Vareta.
A Vareta bateu no Cachorr0.
O Cachorro mordeu o Porco.
O Porco atravessou o rio, splish-splash-splosh!
E Kofi chegou à sua casa antes da hora de deitar, com Piggy-Wiggy trotando na frente.
-Muito bem, Kofi -disse sua mãe, antes de lhe servir mandiocas cozidas bem molinhas para o jantar.
E quem quiser ler ou ouvir mais exemplos de contos com repetição, aqui vão algumas dicas disponíveis na internet.

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